
Veredas digitais
07-06-2011 14:32
Sofisticação crescente dos meios de busca e integração de informações na internet impõem renovação de mentalidades na área de comunicação.
Beth Cataldo, Valor Econômico, 3 de junho de 2011
O filósofo e educador Mário Sérgio Cortella foi buscar no clássico “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, uma narrativa precisa sobre os tempos atuais. Um dos personagens da história é o coelho, que está sempre de olho no relógio, ansioso, martelando um lamento recorrente sobre seu eterno atraso. No alto da árvore, outra criatura de Carroll, o gato, sorri para uma Alice desnorteada, que desconhece até mesmo o destino a que deseja chegar. À pergunta da menina sobre a direção da estrada que trilhava, o gato sentencia, implacável: “Para quem não sabe aonde vai qualquer caminho serve.”
É assim que Cortella vê os internautas modernos, às voltas com uma corrida sôfrega, angustiados pelo “débito intelectual” frente à avalanche de textos, vídeos e fotos, mal digeridos em curtos espaços de tempo. A rigor, no contraponto off-line, poderiam estar diante de uma vasta biblioteca, recheada de preciosidades impressas. Ou dentro de uma imensa livraria, dessas que se alojaram nos shopping centers como se fossem um porto virtuoso em meio aos pecados do consumo. Abundância de informação, afinal, sempre existiu, mesmo sem as facilidades de acesso oferecidas pelas ferramentas virtuais.
O diagnóstico de Cortella, expresso no livro “Não Nascemos Prontos” (Vozes, 2009), que já soma dez edições, mantém-se intacto: é preciso ter capacidade de discernir, saber aonde se quer chegar, aprender a trilhar o caminho certo para buscar a melhor informação ou para encontrar respostas às indagações que motivaram a jornada. “Sem critérios seletivos, muitos ficam sufocados por uma ânsia precária de ler tudo, acessar tudo, assistir a tudo. É por isso que a maior parte dessas pessoas, em vez de navegar na internet, naufraga”, conclui.
A professora Elizabeth Saad, do departamento de jornalismo e editoração da ECA-USP, tem algumas pistas a oferecer nesse mar de perplexidade. O que impacta os personagens que transitam atordoados no universo digital é a informação em tempo real, sinônimo de supressão da barreira do distanciamento dos fatos, que agora invadem os espaços e os sentidos de forma irresistível. Numa sucessão infernal, rompendo o conforto da indiferença, transportam-se para o cotidiano de cada um o tsunami do Japão, a tragédia das crianças assassinadas no Realengo ou a apoteose da conquista esportiva.
As reações negativas mais frequentes, anota a estudiosa do assunto, costumam se polarizar entre a busca obsessiva por mais informações, que aprisiona o internauta de olhos vidrados na tela por períodos intermináveis, e a rejeição absoluta ao excesso e à proximidade das notícias. Nesses extremos, paira a sensação quase permanente de invasão e fragilidade diante de uma realidade que avassala e intimida. “É um comportamento emocional, a pessoa se sente invadida, enfraquecida, quer parar com aquilo para se proteger”, observa Elizabeth.
Há cerca de 15 anos, os especialistas americanos do Media Laboratory, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), anteviam essa convivência atormentada à medida que aumentasse o volume de conteúdos a transitar pela internet. O jornalista Júlio Moreno, gerente de projetos educacionais da Fundação Padre Anchieta, frequentou as reuniões do Media Lab naquela época e vocaliza a pergunta que já se sabia previsível: “Será que estou a par de tudo?” Era também o momento da crença inabalável na concentração do poder virtual nas mãos dos cidadãos, uma perspectiva que o tempo se encarregaria de relativizar por força da ascensão de poderosas empresas de tecnologia da informação no cenário global.
Pioneirismo
Na fase em que o mercado de informação em tempo real começou a ser desbravado no Brasil, o preço da instantaneidade cabia no bolso de poucos. O setor financeiro foi um desaguadouro natural de iniciativas pioneiras na mídia digital. E a explicação é simples: as instituições financeiras não apenas contavam com infraestrutura tecnológica para suportar o acesso imediato aos conteúdos virtuais, numa época de bandas estreitíssimas, como também estavam dispostas a pagar para tê-los a tempo e a hora das operações de mercado. O resultado foi um forte viés financeiro na primeira linha de produção jornalística em tempo real, sobrevivente ao estouro da bolha da internet no ano de 2000.
Os agentes do mercado continuam a ser consumidores vorazes de conteúdos em tempo real. Mas há diferenças importantes observadas no cenário contemporâneo. A mais marcante é que o acesso às informações instantâneas ampliou-se para segmentos sociais e econômicos muito mais vastos, que não se limitam a acompanhar a uma distância reverente as notícias especializadas e os “feeds” das bolsas de valores.
Trata-se, agora, de compartilhar as informações oferecidas pelos veículos de comunicação ou por iniciativas individuais em sites, blogs, microblogs, redes sociais e uma variedade infinita de espaços virtuais. Mais do que isso, multiplicam-se as possibilidades de interação e personalização: as informações atravessam as redes sociais e saem do outro lado com novos matizes. Os que frequentam essas teias virtuais prescindem, na maioria das vezes, da presença dos veículos tradicionais de comunicação ou de seus formuladores – há muito os jornalistas deixaram de exercer o antigo protagonismo no mundo da geração de notícias.
Nesse contexto de informação onipresente e profusão de fontes, a sensação de atordoamento pode ser compensada pela busca do equilíbrio entre velocidade e contemplação, como receita outro pesquisador do assunto, o sociólogo André Lemos, da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em outras palavras, ele acredita que seja necessário quebrar o ritmo incessante do consumo de informações, para abrir espaço à lentidão, que pode levar à reflexão, à identificação de relações entre fatos e consequências – o conhecimento, enfim. Daí a recomendação do exercício contemplativo, quase uma heresia nos tempos céleres de hoje.
Lemos, que também é diretor do Centro Internacional de Estudos Avançados e Pesquisa em Cibercultura, enxerga a internet como uma máquina de leitura, agraciada com dispositivos que trazem profundidade e amplitude ao ato de ler. “Temos cada vez mais leitores”, diagnostica. Mas o processo de leitura, insiste, impõe também momentos de desaceleração do ímpeto de rastrear novas informações de forma ininterrupta, mal digeridos os conteúdos que acabaram de sair do radar. A introspecção acarretada pelo esforço de refletir completa esse ambiente contrastante com a normatização da urgência como único padrão desejável de consumo de informação nos tempos atuais.
No universo digital, cabem a biblioteca de Cambridge e os diários pessoais da adolescente, assim como se eternizam as obras de arte da capela Sistina e as instruções para o uso de armas e bombas caseiras. As ferramentas sofisticadas e complexas inventadas pelos especialistas para facilitar a navegação e busca na internet conseguem localizar qualquer tema que se queira tatear, mas não são capazes de responder à pergunta proposta por Cortella: aonde se quer chegar? É isso que desafia os estudiosos do tema, as empresas produtoras de conteúdo e os próprios consumidores da informação.
Mudanças
As mais recentes etapas da evolução do jornalismo digital indicam que os internautas podem contar pelo menos com estradas melhor pavimentadas para o trânsito de informações. O aparato tecnológico em torno dos conteúdos digitais volta-se cada vez mais para o chamado “database journalism” – nome de batismo sacramentado nos Estados Unidos. Ainda recente no Brasil, o conceito tem sido aplicado por tradicionais grupos americanos de mídia, como o “New York Times”, com a perspectiva de entregar aos usuários dessas plataformas inovadoras um conjunto articulado de informações, orientado para seus interesses mais diretos.
O sistema pressupõe a indexação abrangente de conteúdos como ponto de partida para a criação de uma complexa taxonomia, que envolve a construção de vocabulários controlados, com relações hierárquicas e associativas entre os termos. Mais afeita ao terreno da ciência da informação, que se dedica à gestão e ao tratamento de informações, a organização desses modernos bancos de dados não se limita à identificação de palavras-chave. É possível rastrear assuntos correlatos com muito maior riqueza e profundidade, criar ambientes digitais que façam sentido para o usuário e guardem coerência com uma linha editorial previamente definida pelos provedores de conteúdos.
As técnicas manejadas pelos especialistas emulam os sistemas neurais, com uma estrutura baseada em interconexões entre as múltiplas facetas dos assuntos selecionados. O resultado final proporcionado pela experiência do “database journalism” é a articulação de diferentes conteúdos e linguagens sobre um mesmo tema, que se expressam em textos, vídeos, fotos, gráficos, infográficos e outras tantas possibilidades de formatos. Os internautas experimentam um processo de imersão nos temas de seu interesse, com acesso a informações históricas e contemporâneas, aprofundando-se em ideias e observações no ritmo e na extensão que desejarem.
A partir desse instrumental técnico e da qualificação dos que o manejam, chega-se à montagem do percurso que o usuário trilhará para formar sua opinião sobre os acontecimentos. A resposta preparada pelos grandes grupos de comunicação aos desafios da era digital, e que exige recursos financeiros e humanos generosos, encontra ressonância na avaliação de Lemos de que os veículos tradicionais da imprensa não perdem importância no novo cenário digital. Apenas enfrentam o que ele classifica de “reconfiguração da paisagem comunicacional”, mesmo que seus contornos ainda não estejam completamente nítidos.
Curadoria
É consensual a percepção de que se consolidou o movimento de pulverização da interface entre fontes e usuários de informação, antes concentrado em poucos atores, e de proliferação de novos formatos para o seu exercício. Costuma-se privilegiar também a capacidade de o internauta governar o próprio destino e garimpar conteúdos adequados ao seu perfil. Uma singular “ecologia das ideias”, como aposta o professor da UFBA, poderia decantar os conteúdos mais valiosos na internet e condenar o lixo residual à irrelevância. O acesso a bancos de dados dotados de inteligência virtual representa um passo a mais nesse sentido, mas não é a única janela aberta para se vislumbrar um novo cenário.
O radar digital aponta, ao mesmo tempo, a renovação do papel dos que se encarregam de intermediar o contato dos usuários com o mundo da informação. O processo de mediação, que se imaginava fulminado pelas conexões diretas proporcionadas pela internet, também é parte da resposta às inquietações geradas pela nova era da comunicação. Se antes a participação de jornalistas parecia destinada a sobrar na cadeia da produção de novos conteúdos, agora assumiu a roupagem de curadoria, com o desafio de distinguir caminhos inteligíveis no cipoal de informações desconexas. Tudo isso para um público que precisa mais do que nunca de referências confiáveis para construir seu universo temático.
Os pesquisadores atestam a ampliação do papel dos mediadores no espaço digital, convulsionado por mutações constantes, que desafiam posições estabelecidas e enredos previsíveis. “A má notícia é que não vai parar nunca”, graceja Elizabeth, referindo-se ao compreensível incômodo provocado pela convivência com a instabilidade característica dos cenários de mudança. Na outra face desse fenômeno, ela acrescenta, é possível perceber os sinais de revigoramento em ambientes profissionais que se mantinham encapsulados e resistentes à inovação.
A nova roupagem da curadoria exige o aprimoramento da qualificação dos profissionais da comunicação, para torná-los aptos a manejar conteúdos muito mais amplos e variados, em diferentes linguagens e plataformas. No exercício do “database journalism” será necessário contar com especialistas capazes de utilizar esse conjunto de instrumentos para contextualizar os fatos e ir além dos filtros oferecidos pelos avançados bancos de dados. O que desponta é a carência dramática de seleção e organização das informações, sob critérios transparentes e críveis. É isso que vai distinguir, aos olhos dos navegantes da informação digital, os mediadores confiáveis daqueles que não merecem crédito.
São desafios que remetem para a base da formação dos jornalistas, à parte a controvérsia sobre a exigência legal do diploma para o exercício da profissão. A necessidade de forjar profissionais mais sofisticados para enfrentar os tempos modernos da informação digital é reconhecida pelo diretor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), David Renault, com passagem por alguns dos principais jornais e revistas do país. Uma das saídas apontadas por ele é a abertura de maior espaço na estrutura curricular para uma porção generosa de disciplinas optativas – um terço do total, no caso da escola que dirige -, como parte do projeto pedagógico de dar aos alunos autonomia de ação e pensamento.
Os estímulos ao refinamento da formação intelectual, com foco em áreas como sociologia, história e economia, alimentam a expectativa de que esses futuros profissionais estejam mais aptos a desempenhar o papel de escolher, combinar e articular conteúdos, de acordo com o novo figurino do editor digital. Na UnB, eles convivem também com a ênfase na formação multimídia, para que possam atuar em diversas linguagens, no modelo convergente das plataformas digitais. A moldura final é a preocupação com a formação ética, um divisor de águas na “terra de ninguém da internet”, como define Renault.
O esforço de conceber novas mentalidades na área de comunicação passa pelo incentivo a que os alunos busquem cada vez mais “os porquês e comos”, na definição que Elizabeth utiliza para indicar a densidade de conhecimento que lhe serve de inspiração. Nas suas aulas na USP, os alunos se habituaram aos chamados exercícios de correlação, que combinam textos literários, obras de arte, autores seminais e referências variadas em ciências humanas. A expectativa é a de colher, no final, um profissional que seja não apenas um leitor qualificado, mas também um esteta, com estofo suficiente para dar respostas convincentes aos novos consumidores de informação.
Para os que desejam companhia na viagem pela internet, aqueles que se perdem em seus descaminhos, o futuro deve reservar atalhos mais seguros em direção a melhores e mais confiáveis conteúdos. A combinação de informações rapidamente perecíveis, à margem da estrada, com aquelas que permanecem por mais tempo nas vias principais exigirá perícia e habilidade dos condutores dessa travessia. As velocidades podem ser alternadas – rapidez e lentidão, instantaneidade e perenidade. A profundidade também poderá ter dimensões variadas. Tudo para se extrair do universo digital bem mais do que ansiedade e desinformação.
—————